A atual pandemia causada pela COVID-19, com suas implicações médicas, econômicas e psicossociais diretas e indiretas, gerou uma grande crise de saúde mental, para além dos impactos na saúde física. As pesquisas em psicologia e epidemiologia indicaram aumentos expressivos de aspectos psicopatológicos em diferentes populações, como sintomas de depressão, ansiedade, problemas de sono, transtorno do pânico, transtorno obsessivo-compulsivo, dentre outros (Ahorsu et al., 2020; Chen et al., 2020; Munk et al., 2020; Rajkumar, 2020).
Em um estudo de revisão sistemática que objetivou avaliar o impacto da pandemia pela COVID-19 na prevalência de transtornos depressivos e ansiosos a nível global, foi observado um aumento de 27,6% nos casos de transtorno depressivo e 25,6% nos casos de transtorno de ansiedade, indicando a necessidade urgente de medidas para lidar com a atual crise de saúde mental (COVID-19 Mental Disorders Collaborators, 2021).
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De acordo com Taylor (2019), algumas características individuais colaboram para que as pessoas tenham experiências mais intensas e desadaptativas nos períodos pandêmicos. Dentre elas, o autor destaca:Intolerância à incerteza: tendência para reagir negativamente, a nível emocional, cognitivo e comportamental, às situações e acontecimentos que comportam incerteza. A ambiguidade é vivenciada como estressante;Vulnerabilidade percebida à doença: percepção de que a saúde está potencialmente em risco. Em baixos níveis, os indivíduos podem ignorar as recomendações de segurança, ao passo que em níveis elevados pode colaborar para a adoção de comportamentos prejudiciais;Tendência à ansiedade: o contato com assuntos relacionados à pandemia é seguido por pensamentos ruminativos e catastróficos. Podem interpretar erroneamente suas sensações corporais como sinais de infecção com o coronavírus;Baixos níveis de ansiedade: ausência de preocupação com o cenário pandêmico. Dificulta no engajamento de estratégias para o bom enfrentamento da pandemia;Otimismo: o otimismo em níveis elevados pode levar à criação de falsas expectativas e, consequentemente, à adoção de comportamentos que colocam a saúde em risco.
Frente às incertezas, estresses e necessidades de adaptação perante a pandemia pelo coronavírus, surgiu um novo quadro psicopatológico dentro dos transtornos de ansiedade: a coronofobia. Se por um lado o cenário pandêmico apresenta problemas e impactos reais e evidentemente significativos, por outro, o medo excessivo e a negação da situação também são consideravelmente danosos.
Em suas funções adaptativas, o medo da contaminação pelo coronavírus pode colaborar para a adoção de estratégias úteis, como utilizar máscaras corretamente, lavar as mãos, optar pela vacinação, dentre outros. Por outro, quando em níveis elevados, o medo dos impactos da COVID-19 pode trazer grandes prejuízos funcionais.
Assim, a coronofobia é caracterizada por um medo excessivo, persistente e irreal de situações, pessoas e/ou objetos associados ao cenário pandêmico. Os sintomas incluem palpitações, aumentos do batimento cardíaco, aumento da sudorese, agitação psicomotora, perturbação ou privação do sono, tristeza e culpa (Arpaci et al., 2020).
Para avaliar um quadro de coronofobia, é importante listar a frequência e a intensidade dos sintomas vivenciados, bem como quais são os comportamentos de busca por ajuda, as estratégias e tratamentos procurados, as reações das outras pessoas e, especialmente, o quanto da vida do paciente é afetado pelos sintomas (Ahorsu et al., 2020; Chen et al., 2020; Zorlu et al., 2021).
Como diagnosticar quadros de coronofobia
Para auxiliar na avaliação, listamos abaixo alguns comportamentos que podem indicar um quadro de coronofobia:Ruminações contínuas ou pensamentos obsessivos do tipo “vou morrer”, “vou contaminar minha família”, “a pandemia nunca vai acabar”, entre outros;Esquiva/fuga excessiva de ambientes com outras pessoas (ex.: evita procurar por ajuda médica mesmo em uma situação necessária);Comportamentos excessivos e ritualísticos de segurança (ex.: lavar a mãos várias vezes mesmo sem ter tocado em alguma superfície ou objeto);Busca exagerada por informações sobre a pandemia;Uso de tratamentos pseudocientíficos em excesso;Testagem frequente para verificar a possibilidade de estar infectado pela COVID-19;Visita constante a médicos e serviços de saúde;Experiência sensações de desconforto e/ou sintomas físicos (ex.: calafrios, tremedeira e suor) ao ouvir/ler/pensar sobre a pandemia.
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Estratégias de manejo e tratamento
Até o momento, não existem protocolos ou diretrizes específicas para o manejo dos casos de coronofobia. Por isso, elaboramos aqui uma lista com algumas estratégias que podem auxiliar em sua prática profissional.
As nossas recomendações consideraram os resultados de pesquisas sobre as reações psicológicas a epidemias e pandemias anteriores, bem como intervenções baseadas em mecanismos gerais de mudança empiricamente derivados de estudos em psicoterapia (especificamente voltados para quadros de fobia) (Cordioli & Grevet, 2019; Schneider & Margraf, 2018; Stieger et al., 2018; Taylor, 2019).
Experimentos comportamentais
Devem ser realizados com bastante cautela, de forma que não coloquem o paciente em situação de risco real à vida (por exemplo, ignorando as orientações de segurança para o enfrentamento adequado do cenário pandêmico pelas organizações de saúde).
Os principais objetivos dessa técnica são o aumento do repertório comportamental e a reestruturação cognitiva. Assim, é solicitado ao paciente que procure algumas situações desencadeadoras de medo e ansiedade e permaneça nelas até que a reação desadaptativa perca força ou que as preocupações desproporcionais sejam superadas.
Por exemplo, pode ser orientado ir ao supermercado fazer compras (utilizando máscara adequadamente, respeitando a distância entre as outras pessoas) ou encontrar com familiares (em espaços abertos, com o uso correto de máscara, sem apresentar sintomas gripais, dentre outras recomendações). O paciente pode documentar sobre as experiências de exposição, descrevendo o exercício feito, sinalizando a intensidade e aspectos da ansiedade e quais foram os aprendizados adquiridos.
Estratégias de relaxamento
As técnicas para relaxamento incluem diferentes procedimentos, como exercícios de respiração, técnica de visualização, relaxamento muscular progressivo, entre outros. Para realizá-las, paciente e terapeuta devem identificar juntos qual a melhor modalidade de relaxamento, considerando aspectos contextuais, habilidades e preferências do paciente.
É recomendado o treinamento da técnica em até o seu domínio, antes de seu uso ser implementado nas situações fóbicas. Como exemplo, o paciente pode ser instruído a pensar em ambientes e situações prazerosas, imaginando estar em uma praia ou casa de campo. Peça para que o paciente descreva as sensações, o cenário e outros elementos que julgar importante.
Plano de ação
Os pacientes podem se beneficiar da construção de um material com orientações específicas para o enfrentamento adequado da situação pandêmica. Por exemplo, podem ser instruídos a criar um caderno de anotações contendo o telefone e endereço dos serviços de saúde, datas para vacinação, orientações sobre como reportar às unidades de saúde do município caso tenha apresentado resultado positivo para COVID-19, como e onde são realizados os testes e o tempo em média para o resultado, entre outros.
Correção de erros de interpretação dos sintomas físicos
Em quadros de coronofobia, é comum a interpretação errônea dos sintomas físicos experienciados. Assim, os indivíduos podem, ao sentir uma leve dor de cabeça sem apresentar outros sintomas, procurar imediatamente por exames ou até mesmo tratamentos para COVID-19, gerando gastos desnecessários e colaborando para a sobrecarga de sistemas de saúde.
Por isso, pode ser recomendado monitorar os sintomas apresentados antes de realizar qualquer procedimento precocemente. Ainda, os pacientes podem se beneficiar de um checklist contendo informações sobre quais são os sintomas mais comuns, forma e tempo de apresentação dos quadros de infecção por COVID-19.
Aceitação do período pandêmico
Uma postura de aceitação envolve reconhecer os fatos do mundo como eles são, considerando as demandas do momento presente. A aceitação não diz sobre concordar, endossar ou gostar da situação, mas acolher as incertezas e transformações do período pandêmico como parte da experiência humana. Afinal, por mais que desejemos por uma realidade diferente, isso não muda a realidade presente. Uma postura de aceitação pode colaborar para o engajamento em estratégias mais adaptativas e maiores níveis de bem-estar.
Fonte: Rodrigues, W. S., & Neufeld, C. B. (2022, 7 abr). Coronofobia: quando o medo da Covid-19 se torna o vilão da saúde mental. Blog Artmed. https://artmed.com.br/artigos/coronofobia-quando-o-medo-da-covid-19-se-torna-o-vilao-da-saude-mental