A expressão de características de gênero, que pode não estar relacionada ao estereótipo do sexo atribuído ao nascer, é um fenômeno humano normal. Nos últimos anos, começou a se dar maior atenção a essas diferenças e a promover o reconhecimento de um fenômeno culturalmente diverso e inerentemente não-patológico (1). O termo transgênero é um adjetivo que tem significado amplo: se refere a pessoas que se identificam com um gênero que é diferente daquele binário tradicional (masculino/feminino) baseado em características físicas e no sexo biológico (2). O primeiro estudo de prevalência na América Latina revelou que, no Brasil, cerca de 0,7% da população se reconhece como transgênero (2).
Uma concepção mais atual compreende a heterogeneidade das diferentes expressões, identidades, orientações e gêneros sexuais; além disso, cada uma dessas características pode ser diferente. Uma forma de representar essa pluralidade é por meio do genderbread, que permite visualizar de forma lúdica a diferença de cada um desses aspectos individuais (1,3).
Apesar do reconhecimento de direitos dessa população ter avançado nos últimos anos, o estigma relacionado à variabilidade de gênero ainda é motivo de preconceito (4). Do ponto de vista de saúde, a discriminação pode levar a menor procura por atendimento médico, estresse relacionado ao evento (acolhimento inadequado, patologização da transexualidade, falta de qualificação profissional) e menor adesão a tratamentos e exames de rotina, bem como a maior exposição a fármacos não seguros (5). Por conta disso, deve-se atentar às vulnerabilidades no cuidado com pessoas transgênero em todo atendimento para garantir a equidade de acesso dessa população à saúde. O generalista, em especial, deve acolher essas situações (4).
A seguir, você confere algumas dicas para qualificar o cuidado com essa população – mesmo que o foco do atendimento não tenha relação direta com questões da sexualidade.
Dica #1: Prepare a si mesmo e ao ambiente para o atendimento
Nossa primeira dica é relacionada a aspectos que ocorrem antes mesmo do atendimento de pessoas trans e com identidades não binárias. A preparação pessoal e do ambiente são fundamentais. O médico deve avaliar se compreende a heterogeneidade de expressões e se consegue conversar sobre elas sem julgar ou criar estereótipos.
Além disso, o ambiente também pode se tornar acolhedor com pequenas intervenções. A presença de adereços (broches, bandeiras) reconhecendo orgulho LGBTQIA+ ajudam a indicar que o ambiente é acolhedor.
A linguagem também tem um papel muito importante: por se tratar de contextos diferentes daqueles do médico (na maioria das vezes), pequenos deslizes na linguagem podem acontecer. Nessas situações, a melhor saída é reconhecer o erro e se desculpar (6).
É fundamental atenção com pronomes (seu sua) e artigos (por exemplo, “a travesti” é o termo mais adequado). Expressões que podem denotar doença – como “terapia hormonal” – também não devem ser utilizadas. É importante buscar conhecer o significado de alguns termos como homem e mulher trans, transfeminino ou transmasculino (7).
Dica #2: Questione ativamente sobre o bem-estar emocional do paciente
Além dos eventos estressores comuns experimentados por todas as pessoas e do desconforto de ter uma identidade de gênero não-compatível com o sexo biológico, o estresse de fazer parte de uma minoria é outro fator precipitante de doenças como ansiedade e depressão, que são mais prevalentes nessa população (1). Situações como abandono familiar, isolamento social e expectativa de rejeição são situações comuns.
Durante a consulta, é recomendado questionar ativamente sobre sintomas de depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, violência autoprovocada e ideação/comportamento suicida, assim como uso de tabaco, álcool ou outras drogas. Além da violência externa à qual estão expostos, os pacientes transgênero também estão especialmente vulneráveis à violência no ambiente familiar, tanto física quanto por relações abusivas (8). Quando a família tem reação negativa à identidade de gênero do indivíduo, os impactos podem repercutir por toda a vida.
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Dica #3: Auxilie o paciente a conseguir as transformações físicas desejadas e monitore o processo
Uma das questões mais relevantes para essa população é a transformação corporal para obter caracteres sexuais com que se identificam. Muitas pessoas inclusive já chegam à consulta fazendo uso de algum medicamento hormonal, com frequência inapropriado para sua condição de saúde. A falta de orientação médica pode levar a riscos excessivos e à falha em alcançar o objetivo desejado (4). Nesse ponto, é papel de todo profissional identificar esse tipo de demanda e auxiliar o acesso a esses atendimentos e cuidados, mesmo que não vá realizar esta intervenção diretamente (7).
O uso de hormonização é comum e deve ser questionado ativamente (4). Ela consiste em uso de hormônios (estrógenos por mulheres trans e travestis e testosterona por homens trans) para suprimir o eixo gonadotrófico e promover o surgimento de caracteres sexuais secundários compatíveis com a identidade sexual do indivíduo. Para mulheres trans e travestis, deve-se evitar hormônios sintéticos (presentes na maioria das pílulas anticoncepcionais) por exigirem doses mais altas com maior risco de eventos tromboembólicos e hepatopatia (9). Neste último grupo, é comum a necessidade de bloqueio androgênico adicional; espironolactona e ciproterona são os fármacos mais usados.
Um ponto importante e fonte de dúvidas é o tempo para se atingir mudanças corporais. Deve-se reforçar que algumas mudanças demoram anos, e outras só são completadas com a realização de procedimentos cirúrgicos (9). As Tabelas 1 e 2 apresentam o tempo médio para algumas alterações desejadas.
Os principais cuidados com o paciente em uso de hormônio exógeno incluem adesão, avaliação das transformações físicas esperadas (distribuição de pelos e gordura, proporções do corpo) e revisão de efeitos adversos dos medicamentos (especialmente cardiovasculares e hepáticos) (4). A meta de transformação deve ser sempre individualizada, e o desejo de metas inatingíveis e a automedicação com sobredose de hormônio devem ser avaliados. As cirurgias de readequação sexual fazem parte deste tratamento e sua realização é regulamentada; deve ser realizada por serviços especializados e com equipe multiprofissional (10,11).
Tabela 1. Tempo esperado para efeito masculinizante. Adaptado de (9).
Tabela 2. Tempo esperado para efeito feminilizante. Adaptado de (9).
Dica #4: Não esqueça de oferecer os cuidados preventivos recomendados
A prevenção, o diagnóstico precoce e o tratamento de doenças sexualmente transmissíveis merecem especial atenção entre pacientes transgênero devido à vulnerabilidade para infecções; entre mulheres trans, por exemplo, a prevalência de infecção pelo HIV pode chegar a 36% (8). A testagem para diagnóstico de infecções como HIV, sífilis e hepatites, entre outras, deve ser de fácil acesso, assim como tratamentos e profilaxias (imunizações, avaliação de profilaxia pré-exposição). Vale ressaltar que algumas doenças contam com imunização fornecida gratuitamente pelo SUS: hepatites A (em casos selecionados), hepatite B e HPV (8).
As pessoas trans precisam de atendimento integral que contemple medidas de saúde relacionadas a práticas sexuais ou a outras doenças comuns na população, como neoplasias e doença cardiovascular (8). Orientações gerais sobre qualidade de vida como alimentação saudável e prática de atividade física devem ser lembradas, assim como rastreio de hipertensão e diabetes quando pertinente. O rastreio de câncer de colo do útero é aplicável a todas as pessoas entre 25 e 64 anos que tenham colo uterino e vida sexual ativa. O rastreamento de câncer de mama, por sua vez, deve seguir o protocolo nacional, com dois pontos de detalhe (8):
- excluir do rastreio pessoas com mastectomia total bilateral (pode ser necessário outro método de rastreio diverso da mamografia);
- incluir mulheres trans (ou transfemininas) com idade > 50 anos e uso de estrógeno por mais de 5 a 10 anos.
Dica #5: Sentir-se acolhido e respeitado é parte fundamental do cuidado de qualquer pessoa
Por fim, lembramos que o passo mais importante para o atendimento de pessoas trans e não binárias é o cuidado e a vontade de ajudar (7). Colocar-se de forma aberta no atendimento e conversar sobre expressões, termos e comportamentos (que eventualmente não compreendemos) resolve a maioria das eventuais situações de problemas. Pode ser útil entender o atendimento médico como uma troca, em que a pessoa traz seus problemas e vivências, preferências e características únicas, e o profissional traz possíveis soluções e apoio. Além disso, este é um campo em rápida mudança e expansão; portanto, busque manter-se atualizado.
Fonte: Hastenteufel, L.C.T. & Rados, D. R. V. (2022, 6 out.). 5 dicas para o cuidado de pessoas trans por médicos generalistas. Blog Artmed.